“Dona Ana”, projeto de Tiago Coelho e Ana Sousa Werner, é selecionado pelo programa Rumos Itaú Cultural 2019 – 2020


Há 12 anos, Tiago Coelho e Ana Sousa Werner embarcaram em uma viagem de 4 mil quilômetros em busca de um reencontro, que resultou em uma série de fotos assinadas pelo artista de Santo Antônio da Patrulha. Em 2022 a obra se transforma em livro assinado pela dupla, com lançamento marcado para quarta-feira, 06 de abril, no Barraco Cultural. Dona Ana conta a saga de Ana Sousa Werner, que 40 anos depois de deixar a cidade natal, retorna para reencontrar a família, com textos da autora e fotos de Coelho, projeto contemplado pelo programa Rumos Itaú Cultural. 

Ana Sousa Werner nasceu em um povoado que hoje se chama Vila do Japim, no município de Viseu, a 320 quilômetros da capital paraense e na beira do Rio Piriá, conhecido pelas suas corredeiras e pelo bom banho de água doce. Filha de pais lavradores, cresceu junto aos dez irmãos debaixo de pés de bananeira, sob a supervisão da mãe e da avó. Aos oito anos, já trabalhava na roça plantando algodão, milho, cana e macaxeira. Aos 17, resolveu ir embora para a cidade e avisou só a mãe, hoje falecida. De lá foi para Belém, depois para São Paulo e, já casada e com três filhos, para Santo Antônio da Patrulha, no Rio Grande do Sul. Sem saber ler nem escrever, perdeu totalmente o contato com amigos e parentes.

Quando criança, dona Ana ouvia lendas do folclore brasileiro: histórias sobre a Mãe-d’água, metade mulher, metade peixe, que assoviava de dentro do rio; sobre o Curupira, guardião das florestas “que cantava nas matas como gente”; e também sobre lobisomens, “demônios que se apossavam do corpo das pessoas e as transformavam em animais como porcos, cachorros ou bois”. “Além da onça, que perseguia a mim e aos meus irmãos de verdade”, afirma ela.

Ana trabalhou na casa dos pais de Tiago como babá. Tiago tinha seis anos e Ana 49. “A primeira lembrança que tenho dela é de seu sorriso. E, como boa contadora de histórias que é, sempre povoou meu imaginário com suas memórias – repletas de onças, cobras, macacos, tatus, rios e florestas –, que, para mim, pareciam saídas diretamente de uma fábula. “Dona Ana é uma história de esperança, busca pelo passado, resgate de origens, reencontros, amor, paixão e fé, e que também reflete sobre a complexidade das relações sociais que temos aqui dentro do Brasil”, conta Tiago, professor de fotografia e idealizador da publicação. 

Ao chegar em Santo Antônio da Patrulha, Ana resolveu aprender a ler e escrever para poder resgatar seu passado. Matriculou-se em um curso de Educação de Jovens e Adultos (EJA) e se formou no Ensino Fundamental. “Foi por necessidade. Não saber ler nem escrever é como se a pessoa fosse cega e não pudesse enxergar as coisas”, conta ela. 

Em 2010, dona Ana recebeu um dinheiro inesperado, um resgate do FGTS que tinha um valor muito maior do que ela imaginava. À época, fazia 40 anos que não tinha notícias da família, e decidiu que era hora de resgatar suas origens e voltar à terra natal na esperança de rever os irmãos. Pediu a Tiago que fizesse um retrato da família que constituíra no Sul, para o caso de encontrar a família do Norte. “Foi quando resolvi ir junto, para ajudá-la na busca e também para documentar o percurso, tendo a fotografia como nossa companheira. Porque me interessa muito a ideia de imaginação e relato. Escolhi a fotografia como ferramenta para estudar, conhecer e entrar em diferentes realidades, para construir contatos pessoais e conexões mais profundas com temáticas e personagens”, explica Tiago.

Partiram, então, para a viagem: avião, depois mais dois ônibus e muita estrada de terra. Dona Ana dava suas impressões sobre o caminho, contava sobre o entorno, as comidas, a fisionomia das pessoas. No segundo meio de transporte, quando comentavam sobre a busca, uma desconhecida os interpelou: “Você é a Ana, a falecida?”. “Foi quando descobri que todo mundo achava que eu tinha morrido, menos meu irmão Albino, que tinha feito uma promessa de orações e sessões de jejum para eu voltar. E voltei! No nosso reencontro, choramos que só faltava desmaiar. A máquina até trancou, parou de funcionar”, conta ela emocionada.

“Foi o ápice! Ninguém acreditava no que estava acontecendo. Todos abraçados, em silêncio. A câmera voltou e fiquei ali, registrando o momento, e depois os outros dias. É importante lembrar que por lá não havia luz elétrica em 2010. A tradição oral de passar os saberes é geral da família e do povoado. É interessante porque sempre passa a sensação da pessoa que conta a história, cujos significados são ricos justamente pelas interpretações dos casos e pela linguagem que cada um usa para reconstruir a relação de importância, mistério e felicidade, a maneira de perpetuar. Uma mesma história que me atravessou, da onça que perseguia a família, foi contada de maneiras diferentes pelos irmãos Adaltina, Albino e Ana. Como era a onça que perseguia as crianças? Ela perseguia mesmo ou só ouviam os ruídos dela? O pai matou a onça? Não? A onça era um bebê onça?”, indaga Tiago.

Desde seu lançamento em 2010 o projeto Dona Ana já passou por eventos como a Biennale Photoquai – Musée Du Quai Branly (França), MUFF – Festival internacional de Fotografía de Montevideo (Uruguai), XIX Prêmio Diário Contemporâneo de Fotografia (Belém), Museo de Bellas Artes de Tandil (Argentina), Ningbo International Photography Week (China), entre outros.

Em 2013 Coelho publicou a primeira versão do projeto em versão zine. Dona Ana se queixou que havia muitas páginas em branco e que o resultado final, segundo ela, não chegava nem perto de contar sua história de forma satisfatória. Fez, então, pauta nos espaços que estavam em branco e resolveu redigir, ela mesma e de próprio punho, a sua história. O texto percorre memórias de infância, a vida na roça, a mudança para a cidade, o estranhamento do frio quando chegou ao Sul e as mudanças internas pelas quais passou, incluindo o fato de que não gostava de lavar roupa e de cozinhar, mas agora faz essas atividades com gosto: “Meu prato mais famoso é a feijoada, e também faço uns bifinhos bem bons”, conta orgulhosa.

Tiago também mudou nos 12 anos em que o projeto precisou amadurecer para ficar pronto. “Como fotógrafo e como pessoa. Nunca tinha ido ao Norte do país, tinha apenas referências fotográficas. Foi uma oportunidade para questionar estereótipos e buscar uma construção artística que mesclasse os nossos imaginários, meu e dela, com a realidade. Vivenciei essa experiência e ela segue transformadora na minha vida e no meu trabalho. E essa história, por mais que parta de algo pessoal, reflete a situação de grande parte da população brasileira que migra para outros estados e atravessa o país levando na bagagem seus sonhos, suas expectativas e sua própria cultura”, reflete.

Com 92 páginas, a primeira edição conta com 500 exemplares, editada pela Austral Edições. A sessão de autógrafos em Porto Alegre inicia às 18h e a intenção é lançar a publicação em outros lugares, inclusive no Pará. O livro está à venda pelo site da Austral Edições: https://austral.ink/dona-ana

Sobre o Rumos Itaú Cultural
Um dos maiores editais privados de financiamento de projetos culturais do país, o Programa Rumos, é realizado pelo Itaú Cultural desde 1997, fomentando a produção artística e cultural brasileira. A iniciativa recebeu mais de 75,8 mil inscrições desde a sua primeira edição, vindos de todos os estados do país e do exterior. Destes, foram contempladas 1,5 mil propostas nas cinco regiões brasileiras, que receberam o apoio do instituto para o desenvolvimento dos projetos selecionados nas mais diversas áreas de expressão ou de pesquisa.

Os trabalhos resultantes da seleção de todas as edições foram vistos por mais de 7 milhões de pessoas em todo o país. Além disso, mais de mil emissoras de rádio e televisão parceiras divulgaram os trabalhos selecionados.

Na última edição, de 2019-2020, os 11.246 projetos inscritos foram examinados, em uma primeira fase seletiva, por uma comissão composta por 40 avaliadores contratados pelo instituto entre as mais diversas áreas de atuação e regiões do país. Em seguida, passaram por um profundo processo de avaliação e análise por uma Comissão de Seleção multidisciplinar, formada por 23 profissionais que se inter-relacionam com a cultura brasileira, incluindo gestores da própria instituição. Foram selecionados 92 projetos.

Lançamento e sessão de autógrafos de “Dona Ana”, Tiago Coelho e Ana Sousa Werner
Quarta-feira, 06 de abril, 19h
Barraco Cultural – Rua Laurindo, 332 – Entrada Franca

Publicação à venda pela  https://austral.ink/dona-ana 
No evento será possível adquirir exemplares.